Serviço solidário dá novo sentido à vida de meninas e meninos de até seis anos vítimas de abandono ou violência. Elas têm em comum o desejo de ajudar. E exercitar o que parece ser um desafio: amar com desapego. Mulheres sozinhas ou acompanhadas dos parceiros se dispuseram a acolher em casa, provisoriamente, crianças em situação de risco ou vítimas de violência doméstica.
Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília
Desde 2019 no Distrito Federal, 18 famílias foram habilitadas a dar a meninos e meninas na primeira infância a oportunidade de se manterem em um núcleo familiar até a reintegração aos seus pais ou parentes próximos.
Por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), o GDF desenvolve o serviço Família Acolhedora, um projeto inovador e pioneiro elaborado em parceria com a Promotoria de Justiça do DF, a Vara de Proteção da Infância e da Juventude e o Grupo Aconchego – organização da sociedade civil (OSC) responsável pela execução do programa. Neste mês, a ação comemora um ano desde que a primeira criança recebeu acolhimento – foram 22 até agora.
“Os estímulos que esses meninos e meninas recebem dos pais acolhedores na primeira infância vão refletir na sua fase adulta, contribuir para que tenham qualidade de vida e um futuro melhor”, destaca a secretária de Desenvolvimento Social, Mayara Noronha Rocha.
“Os estímulos que esses meninos e meninas recebem dos pais acolhedores na primeira infância vão refletir na sua fase adulta, contribuir para que tenham qualidade de vida e um futuro melhor”
Mayara Noronha Rocha, secretária de Desenvolvimento Social
Lar provisório
A medida é prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – que em julho completou 30 anos – e difere da adoção por se tratar de um acolhimento temporário. Aliás, esse é o critério primordial para que um cuidador seja habilitado: não estar cadastrado no Sistema Nacional de Adoção à espera de um filho – até porque não há “fura-fila” nesse processo.
A opinião de todas as pessoas ouvidas pela Agência Brasília se mostra unânime: o desenvolvimento infantil em um lar provisório é incomparavelmente maior do que em uma instituição infantil, diante da redução de impacto causado pelo afastamento repentino dos pais.
“As famílias acolhedoras são capacitadas, e tanto elas quanto as da criança afastada seguem permanentemente monitoradas por uma equipe técnica envolvendo psicólogos e assistentes sociais até que essa reintegração seja alcançada”, explica a promotora de Justiça Luísa de Marillac, da Vara da Infância e da Juventude.
Após 12 meses acompanhando o desenvolvimento da pequena Bia (nome fictício, em respeito à sua história e identidade), a servidora Keila Faria Ferreira, 47 anos, está se preparando para uma despedida. A menina, hoje com 2 anos e meio de idade, recebeu um lar provisório depois de ter passado por uma situação de abandono dos pais – dependentes químicos em situação de rua.
Grande parte do desenvolvimento psíquico e motor de Bia foi acompanhada de perto por Keila, pelo marido, Jonesmar Queiroz, 64 anos, e pelos três filhos do casal, já adultos. Com o tratamento de “tias” e “tios”, a família deu a ela os cuidados de filha e a agora está prestes a deixá-la de vez com o pai e a mãe – já reabilitados, com acompanhamento psicológico e lar em reestruturação. “Cada partida é única”, pontua Keila. “Há um sofrimento, mas um misto de alegria e dever cumprido.”
Foto: Paulo H. Carvalho / Agência Brasília
No momento em que a equipe de fotografia da Agência Brasília esteve na casa de Kênia, no Lago Norte, a menina – que agora só fica de sexta a domingo no lar provisório, até ser totalmente reintegrada aos pais – pediu para calçar os sapatos da “tia” a fim de seguir caminhando ao lado dela. A permanência dos laços afetivos é estimulada mesmo depois de encerrado o processo, caso as duas famílias tenham interesse nessa relação. De todos os 22 casos trabalhados, somente um, em que a criança foi colocada para adoção, não contemplou essa possibilidade.
Amor sem egoísmo
Vânia Darc Borges ainda trabalhava nos Correios quando, pelo programa de rádio A Voz do Brasil, ouviu falar pela primeira vez das ações de acolhimento do governo federal – até então ainda não implementadas em Brasília. Tão logo isso aconteceu, ela se inscreveu e já acolheu duas crianças – um menino e uma menina.
Vânia, entre a filha Vanessa e o marido Valdir: “Tenho aprendido a não ter um amor egoísta, a saber que é possível amar sem se prender ao apego” | Foto: Acácio Pinheiro / Agência Brasília
Aos 55 anos e com filhos adultos, Vânia diz que a sensação de espera para a chegada dos bebês foi quase como um parto, tamanha a expectativa. Vânia já fazia trabalhos voluntários com adultos e adolescentes, mas focar suas atividades na primeira infância depois de 27 anos sem cuidar de um bebê foi muita novidade. “Eu não tinha nem um brinquedo em casa”, lembra.
A aposentada, que mora com o marido e os filhos em Vicente Pires, revela que o exercício do amor com desapego é o que a faz forte, ainda que sofra quando as crianças são reinseridas nos seus núcleos familiares de origem.
Uma vez, conta, os avós de uma das crianças de quem ela cuidou mandaram uma mensagem dizendo que o neto estava inquieto. Vânia, então, gravou um áudio orientando-os a cantar uma música de que a criança gostava. Recebeu de volta um vídeo mostrando a alegria do bebê ao ouvir e reconhecer a sua voz – o que foi suficiente para ela se emocionar muito.
“Tenho aprendido a não ter um amor egoísta, a saber que é possível amar sem se prender ao apego”, resume. “Se eu pensar só no meu sofrimento, deixo de ajudar quem precisa. E, vou te dizer: é muito melhor sofrer por aprender a amar mais uma pessoa do que o contrário.”
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